quarta-feira, 15 de abril de 2009

Voto vencido do Cons. Altino

CLASSE : PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO
PROCESSO Nº : 2008.10.00.000617-2
RELATOR : CONSELHEIRO ANTÔNIO UMBERTO DE SOUZA JÚNIOR
REQUERENTE : REGINA MARY GIRARDELLO
REQUERIDO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ
INTERESSADA : SIDNÉA MARIA PORTES NAME
ASSUNTO : DESCONSTITUIÇÃO DE ATO ADMINISTRATIVO
VISTOR : CONSELHEIRO ALTINO PEDROZO DOS SANTOS


VOTO DIVERGENTE


I – RELATÓRIO

Transcrevo, para melhor compreensão do pedido, o inteiro teor daquele apresentado pelo eminente Conselheiro Antônio Umberto de Souza Júnior:

“Trata-se de PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO proposta por REGINA MARY GIRARDELLO contra o TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO PARANÁ, em que alega que o Decreto Judiciário 272/2003 delegou a SIDNEA MARIA PORTES NAME (interessada neste PCA) o exercício do cargo de Oficial do 1º Tabelionato de Protesto de Títulos da Comarca de Curitiba, sem concurso público, com base no art. 208 da Emenda Constitucional nº 1/69, na redação conferida pela Emenda Constitucional nº 22/82. Segundo a requerente, o filho da efetivada faleceu em acidente aéreo em 2000. Alega que a jurisprudência tanto do STF quanto do STJ e do CNJ é pacífica no sentido da inexistência de direito adquirido do substituto da serventia extrajudicial, com base no art. 208 da Constituição de 1967, quando a vacância ocorra na vigência da Constituição de 1988 (REQ2).
Indeferi de plano o requerimento inicial por inexistência de documentação que comprovasse o endereço da requerente (DEC5), condição posteriormente satisfeita pela requerente (DOCSETDIG9), levando-me a reconsiderar a decisão por provação recursal da interessada.
O tribunal requerido prestou informações (OF18), alegando que o Decreto Judiciário objeto do PCA não possui irregularidades, pois é pacífico o entendimento de que há direito adquirido do substituto da serventia à investidura na respectiva titularidade sem concurso público desde que a vacância do cargo ocorresse após o advento da Constituição Federal de 1967 e a Emenda Constitucional nº 1/69. Acrescenta ainda que a Constituição de 1988 não apresenta incompatibilidade com o sistema anterior porque há direito adquirido do substituto (OF18, p.1).
Em 28.4.2008, manifestou-se a Sra. Sidnea, na condição de interessada, alegando, preliminarmente, inexistir interesse ‘individual’ e ‘nacional’ no pleito, razão pela qual não se deve conhecer o pedido, conforme os PCAs 27, 64, 151 e 218 do CNJ (REQAVU28), p. 1). No mérito, alega que o pedido deveria ser julgado improcedente pelas seguintes razões:
a) em 1965 a interessada foi aprovada por concurso público no cargo de Oficial Maior de serventia extrajudicial, correspondente ao substituto legal do titular (REQAVU28, p. 2);
b) o atual Código de Organização Judiciária paranaense determina, no art. 244, que ‘aos oficiais maiores e aos escreventes juramentados ainda remanescentes quando da entrada em vigor deste Código e com direitos assegurados pelo art. 200 da Resolução 01/70, aplicam-se as disposições previstas no Livro IV, Título XI, Capítulo II, referindo-se aos deveres dos titulares’ (REQAVU28, p. 3, e DOCSETDIG30);
c) a Constituição de 1967, alterada pela Emenda nº 1/69, com a nova redação dada pela Emenda 22/82, determinava: c.1) no art. 207, a realização de concurso público de provas e títulos para provimento de serventias extrajudiciais; c.2) no art. 208, a exceção de que seria assegurada aos substitutos legais a possibilidade de efetivação no cargo de titular, na vacância, desde que reunidos determinados requisitos (5 anos na mesma serventia antes de 1983);
d) a Constituição de 1988, no § 3º do art. 236, estabeleceu a regra geral do concurso público para ingresso nas atividades notariais e de registro, mas não estabeleceu nenhuma regra retroativa para direitos adquiridos na ordem constitucional anterior;
e) a interessada cumpriu os requisitos legais;
f) a regra geral do concurso público deve conviver com o direito adquirido assegurado pela Constituição de 1969, pois a nova Constituição não estabeleceu expressamente a perda do direito adquirido;
g) a vacância da serventia ‘não seria um dos requisitos para a aquisição do direito e sim a condição necessária para o seu exercício (art. 6º, § 2º, da LICC)’.
Em 5.5.2008, abri prazo para a requerente manifestar-se sobre as informações prestadas, tendo o prazo transcorrido em branco.
Depois de apurar possível pendência de ação judicial a inibir a tramitação deste procedimento no âmbito do CNJ, suscitei questão de ordem, acolhida pela voz do Plenário, no sentido de que ‘eventuais decisões judiciais, fora do âmbito do STF e proferidas quando já em curso procedimento administrativo conexo neste Conselho, não prejudicam nem neutralizam a atuação do CNJ, sendo írrita, em relação a este órgão de controle e planejamento central do Poder Judiciário nacional, qualquer decisão judicial em sentido contrário proveniente de instâncias inferiores’.”
É esse o relatório.
II – FUNDAMENTOS DO VOTO
No mérito, o eminente Conselheiro relator julga procedente o pedido inicial, sintetizando as razões do seu convencimento na ementa que ora transcrevo:
“EMENTA: PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. SERVENTIAS EXTRAJUDICIAIS. 1. PROVIMENTO SEM CONCURSO PÚBLICO. EFETIVAÇÃO. NULIDADE. Irregular a investidura de escrevente, ainda que concursado, na titularidade de serventia extrajudicial, por ato expedido a partir de 5 de outubro de 1988, eis que intolerado pela Carta Constitucional em vigor o provimento derivado de cargos públicos (CF, art. 37, II e § 2º), mesmo em regime de delegação (CF, art. 236, § 3º). Inaplicabilidade da hipótese de efetivação, prevista no art. 208 da EC nº 1/69. Precedentes do STF e do CNJ. 2. EFETIVAÇÃO. RELEVO DA DATA DA VACÂNCIA. INEXISTÊNCIA DE DIREITO ADQUIRIDO. Inexiste direito adquirido à efetivação de substituto na titularidade de serventia extrajudicial, com base em dispositivo constitucional da ordem anterior, quando a vacância da serventia somente ocorre na vigência da nova ordem constitucional. Precedentes do STF. 3. EFETIVAÇÃO. REQUISITO DA ESTABILIDADE NA SERVENTIA. Constitui óbice à efetivação de substitutos a mudança de serventia. O art. 208 da Constituição anterior somente assegurava a efetivação na mesma serventia onde fosse implementado o tempo mínimo de interinidade habilitante ao favor constitucional excepcional. É irregular a efetivação de substituto em serventia diversa daquela em que tenha exercido a interinidade até 31 de dezembro de 1983. Pedido conhecido e acolhido. Determinação para desconstituição de todas as situações similares, assegurado, administrativamente, o direito de defesa aos interessados afetados”.

Para chegar a essas conclusões valeu-se Sua Excelência dos seguintes fundamentos:

“O texto introduzido pela Emenda Constitucional nº 22/82 deve ser aqui transcrito para a melhor compreensão do problema:

Art. 208. Fica assegurada aos substitutos das serventias extrajudiciais e do foro judicial, na vacância, a efetivação, no cargo de titular, desde que, investidos na forma da lei, contem ou venham a contar 5 anos de exercício, nessa condição e na mesma serventia, até 31 de dezembro de 1983. [Sem grifo no original]

Consultando a documentação trazida aos autos pelo Tribunal de Justiça, em especial o sistema de histórico funcional produzido pelo próprio Tribunal (DOCSETDIG19, p. 6 e segs.), têm-se as seguintes informações relativas à requerida:
a) 1966 – nomeada para exercer o cargo de Oficial na IDR nº 2, Tabelionato de Notas e Ofício de Protesto de Títulos e Documentos da Comarca de Nova Esperança;
b) 1968 – nomeada para exercer o cargo de Oficial na IDR do 1º Tabelionato de Notas e anexos da sede da Comarca de Maringá;
c) 1969 – removida do cargo de oficial maior do 1º Tabelionato de Notas da Comarca de Maringá para o Cartório de Protesto de Títulos de Maringá;
d) 1971 – designada para substituir Silvio Name no cargo de titular do Cartório de Protesto de Títulos da sede da Comarca de Maringá durante o período de 2 anos, durante a licença do titular;
e) designada para responder pelo Cartório de Protestos de Títulos da Comarca de Maringá durante o período em que o titular ficou à disposição da Secretaria de Justiça do Paraná (até 31.12.81) ;
f) 1990 – transferida do 1º Ofício de Protestos de Títulos da Comarca de Maringá para o mesmo Ofício da Comarca de Curitiba;
g) 1999 – designada para substituir Silvio Name Júnior no cargo de Oficial do 1º Ofício de Protestos de Títulos de Curitiba por 2 anos, tendo em vista licença concedida ao titular;
h) 2001 – designada para responder pelo 1º Ofício de Protesto de Títulos de Curitiba em razão do falecimento do titular.
Da mesma forma como ocorreu no PCA 200710000003932, em que também figurava no pólo passivo o Tribunal de Justiça do Paraná, embora a interessada, Sra. Sidnea, tenha sido mantida na condição de substituta nos 5 anos anteriores à data determinada pelo art. 208 da Emenda 22/82, não ocorreu a condição mais importante definida no dispositivo constitucional pretérito, que era a ocorrência da vacância da serventia no ambiente constitucional revogado.
A vacância ocorreu, como informa tanto a requerente quanto o Tribunal de Justiça e a interessada, no ano de 2000, ou seja, na vigência da nova ordem constitucional. Por isso, inaplicável o disposto no art. 208 da EC 1/69, não havendo espaço para socorro na tese de direito preconstitucional adquirido, conforme entendimento uníssono do Supremo Tribunal Federal:
‘CARTÓRIO DE NOTAS. Depende da realização de concurso público de provas e títulos a investidura na titularidade de serventia cuja vaga tenha ocorrido após a promulgação da Constituição de 1988 (art. 236, § 3º) não se configurando direito adquirido ao provimento, por parte de quem haja preenchido, como substituto, o tempo de serviço contemplado no art. 208, acrescentado, às Carta de 1967, pela Emenda nº 22, de 1982.’ (STF, 1ª T., RE 182.641/SP, GALOTTI, j. 22.8.95, DJU 15.3.96)
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. SERVENTIA EXTRAJUDICIAL. VACÂNCIA NA VIGÊNCIA DA CONSTITUIÇÃO DE 1988. EFETIVAÇÃO DO SUBSTITUTO. Inexistência de direito adquirido ao favorecimento do art. 208 da CF/67 (redação da EC 22/82). Precedentes do STF. Regimental não provido (STF, 2ª T., RE-AgR 302739/RS, JOBIM, j. 19.3.2002, DJU 26.4.200, p. 87)
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. SERVENTUÁRIO DA JUSTIÇA. EFETIVAÇÃO DE SUBSTITUTO NO CARGO VAGO DE TITULAR, NOS TERMOS DO ART. 208 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. REQUISITOS. CONTAGEM DO TEMPO DE SUBSTITUIÇÃO E ESTAR EM EXERCÍCIO NA SERVENTIA AO TEMPO DA VACÂNCIA. 1. A Emenda Constitucional 22, de 29 de junho de 1982, assegurou a efetivação do substituto da serventia, no cargo de titular, quando vagar, àquele que contasse, a partir da sua vigência, ou viesse contar até 31 de dezembro de 1983, cinco anos de exercício, nessa situação de substituto, na mesma serventia. 2. O serventuário substituto. Ascensão à titularidade do cargo, cuja vacância ocorreu na vigência da Constituição do Brasil. Direito adquirido. Inexistência. Precedentes. Agravo regimental não provido (STF, 2ª T., RE-AgR 413082/SP, EROS, j. 28.3.2006, DJU 5.5.2006, p. 37).
RECURSO EXTRAORDINÁRIO: DESCABIMENTO: Acórdão recorrido que, na linha de jurisprudência do Supremo Tribunal, decidiu que o substituto de serventia não tem direito adquirido a ser investido na titularidade, quando a vaga surge após o advento da Constituição de 1988. Precedentes (STF, 1ª T., AI-AgR 545173/SO, PERTENCE, j. 9.5.2006, DJU 2.6.2006, p. 8)
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PROVIMENTO. EFETIVAÇÃO NA TITULARIDADE DO CARTÓRIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE PACAEMBU. VACÂNCIA OCORRIDA NA VIGÊNCIA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 236, § 3º. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. A investidura na titularidade de Serventia cuja vaga tenha ocorrido após a promulgação da Constituição de 1988 depende de concurso público de provas e títulos (STF, 1ª T., RE-AgR 252313/SP, PELUSO, j. 9.5.2006, DJU 2.6.2006, p. 12)
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. SERVENTUÁRIO DA JUSTIÇA. OFICIAL DE REGISTRO. 1. A investidura na titularidade de Serventia cuja vaga tenha ocorrido após a promulgação da Constituição de 1988 depende de concurso público de provas e títulos. Precedentes. 2. Agravo Regimental a que se nega provimento (STF, 2ª T., RE-AgR 527573/ES, EROS, j. 8.5.2007, DJe 28, de 31.5.2007)
Não bastassem os argumentos até aqui lançados – que, em linhas gerais, repete os fundamentos das decisões desconstitutivas anteriormente proferidas neste Conselho – é digno de destaque detalhe fático extremamente importante neste caso concreto: como visto acima, em dezembro/83, termo final de verificação do tempo de interinidade habilitador da efetivação prevista na ordem constitucional anterior, a interessada atuava em Maringá.
Todavia, foi a interessada em causa efetivada em serventia de Curitiba, circunstância que revela o distanciamento de outro dos requisitos impostos pelo art. 208 da CF/67: a excepcional regra de efetivação somente abrigava interinos que houvessem completado os cinco anos de substituição na mesma serventia em que aspirassem a titularidade.
Como a efetivação ocorreu em serventia diversa, mesmo que se desprezassem todos os outros argumentos se concluiria que à interessada não assistiria o direito outorgado pela corte paranaense.
Em síntese: seja porque o ato de efetivação foi expedido quando a ordem constitucional que o alicerçava já não mais vigia, seja porque a vacância apenas ocorreu na ordem constitucional atual e seja porque, mesmo à luz da ordem constitucional revogada, faltava à interessada o requisito de identidade entre a serventia de interinidade e a serventia de efetivação, andou mal o tribunal requerido ao deferir o pedido de titularização de serventia extrajudicial sem submissão a concurso público”.
E, assim concluiu o eminente Conselheiro relator:
“Pelo exposto, rejeito a preliminar suscitada pela interessada e, no mérito, julgo procedente o requerimento inicial para:
a) desconstituir o Decreto Judiciário 272/2003;
b) afastar a serventuária indevidamente efetivada;
c) ratificar os atos realizados pela serventuária ora destituída da titularidade da serventia extrajudicial alcançada por esta decisão até a data de sua intimação do inteiro teor desta decisão, a fim de que não haja prejuízo para terceiros de boa-fé, deles beneficiários;
d) considerando que a situação posta neste feito é similar àquela constatada no PCA 2007100000003932, indicando a possibilidade de persistirem outras efetivações viciadas constitucionalmente, determinar que o TJ-PR (d.1) levante, em dez dias, todos os atos de efetivação de substitutos na titularidade das serventias extrajudiciais vagas a partir de 5 de outubro de 1988 e, assegurado o direito de defesa administrativa, em prazo razoável, a todos os possíveis titulares atingidos, e, presentes as premissas fáticas deste caso, (d.2) desconstitua imediatamente todos os atos de efetivação de substitutos na titularidade das serventias extrajudiciais do Estado, expedidos a partir de 5 de outubro de 1988, e (d.3) providencie a inclusão das serventias vagas em decorrência desta decisão no próximo edital de concurso público para provimento das serventias extrajudiciais, a ser concluído no prazo máximo de seis meses.
e) conceder ao Tribunal requerido o prazo de sessenta dias para informar ao CNJ as providências adotadas para efetivação desta decisão.”

Passo, por conseguinte, a proferir o meu voto.
Consta dos autos que a interessada, em 22 de dezembro de 2000, então Oficial Maior do Cartório do 1º Ofício de Protestos de Títulos de Curitiba, em decorrência do falecimento do titular, Sílvio Name Júnior, requereu ao Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná a sua efetivação como titular da referida serventia, com fundamento no artigo 208 da Constituição Federal de 1967, com a alteração introduzida pela Emenda n.º 22, de 26 de junho de 1982.
A questão que se apresentava era saber se a requerente, tendo sido aprovada em concurso público de provas e título e preenchido o requisito temporal fixado no artigo 208 da Constituição Federal de 1967, com a redação dada pela Emenda n.º 22/1982, teria direito adquirido à efetivação na titularidade, ainda que em serventia diversa daquela em que implementara aquele requisito, em razão da superveniência da Constituição Federal de 1988, cujo artigo 236, § 3º passou a estabelecer a obrigatoriedade de concurso público de provas e títulos para ingresso na atividade notarial e de registro.
O eminente Desembargador Presidente do Tribunal de Justiça, ao deferir o pedido da interessada o fez louvando-se em precedentes do próprio Tribunal e em pareceres da Corregedoria Geral da Justiça e de ilustre Professor Titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Estado do Paraná, nos quais, analisando-se a controvérsia que se instalou a respeito do tema, tanto no âmbito da jurisprudência quanto da doutrina, acerca do tema, propugnava-se que à requerente assistia o direito à efetivação na titularidade da serventia.
Tem-se, portanto, num primeiro momento, que o ato impugnado está respaldado em decisão administrativa revestida das formalidades legais, ainda que se possa admitir, por mero argumento, que seu ilustre prolator tenha adotado tese jurídica favorável à interessada, porém, em descompasso com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Seguindo essa linha de raciocínio, penso que o ato não pode ser desconstituído sob o argumento, isolado, de ofensa ao princípio da legalidade, pois “(...) os limites de modificação do ato administrativo encontram-se não só nos direitos subjetivos que eventualmente dele derivem, como também no interesse público em se proteger a boa-fé e a confiança (Treu und Glaube) dos administrados, princípios traduzidos na crença de que o Poder Público prima por emanar atos regulares.” (NASSAR, Elody. Prescrição na administração pública. – 2ª Ed., rev. atual. e ampl. – São Paulo : Saraiva, 2009, p. 62)
MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e JOÃO PACHECO DE AMORIM, comentando as implicações jurídico-administrativa resultantes da violação do princípio da boa-fé introduzido no artigo 6-A do Código do Procedimento Administrativo português pelo Decreto-Lei n.º 6/1996, ponderam, após sustentarem que a atuação de boa-fé de um dos intervenientes não tem o condão de, por si só, fazer desaparecer o vício invalidante de que sofre o ato administrativo, que:

“(...)
As hipóteses em que se vem admitindo algo diferente são, por exemplo, a de a Administração ter considerado, durante um longo espaço de tempo, uma dada situação conforme ao Direito (apesar de ilegal), mas pretender agora, porque a manutenção dela já não lhe aproveita, invocar a sua nulidade (por vício de forma ou qualquer outro) ou de ter, com a sua conduta ilegal (consubstanciada ou não em acto administrativo), induzido em erro o particular, e querer depois extrair dessa conduta, de forma intolerável, efeitos desfavoráveis para o administrado de boa-fé.”(Código do Procedimento Administrativo comentado. Coimbra : Almeida, 2ª Ed., 2006, p. 113, n.º V). (Destaquei).
No meu modo de ver, a análise da decisão prolatada pela Presidência do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, para deferir o pedido de efetivação da requerente, revela contornos semelhantes aos da hipótese mencionada pelos ilustres juristas portugueses e objeto de destaque por este relator.
CARLOS BASTIDE HORBACH, Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo – USP e Mestre em Direito do Estado e Teoria do Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRS, ao tratar dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo em alentado estudo sobre a teoria das nulidades do ato administrativo, ensina:

“(...) é certo que a construção dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, considerando o ato inconstitucional nulo e írrito, influiu na solidificação, entre os administrativistas, da idéia de que o ato administrativo irregular sempre seria nulo, não admitindo forma mais branda de invalidade.
Ocorre, entretanto, que desde o advento da Lei 9.868, de 10.11.1999, que regula o processo de julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade e das ações declaratórias de constitucionalidade perante o STF, há a possibilidade de o ato normativo ser declarado inconstitucional sem efeitos retroativos, ou seja, há a possibilidade de o Tribunal, por uma maioria qualificada, conferir efeitos aos atos inconstitucionais, dentro da perspectiva kelseniana já exposta.
Assim dispõe o art. 7 da mencionada lei: ‘Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de relevante interesse social, poderá o STF, por maioria de 2/3 (dois terços) de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado’.
Em nome da segurança jurídica, portanto, admite a lei a produção de efeitos por um ato normativo inconstitucional, em contrariedade óbvia com a tradicional doutrina norte-americana, que influenciou os administrativistas pátrios.” (“Teoria das nulidade dos atos administrativos”. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2007, p.261).
Por derradeiro, MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, também citado por ADA PELLEGRINI GRINOVER, invocando a jurisprudência da Corte de Justiça da Comunidade Européia, lembra que “O princípio da confiança legítima pode ser invocado quando um ‘particular... se acha numa situação a respeito da qual a administração fez nascer esperanças fundadas’ (‘espérances fondées’)”. (“A atividade administrativa em face do sistema Constitucional”. In “Os 20 anos da Constituição da República Federativa do Brasil” / Alexandre de Moraes, coordenador. – São Paulo : Atlas, 2009, p. 51).
Tudo quanto se expôs até aqui teve em mira sedimentar o caminho para a conclusão a que me proponho neste voto: reconhecer a possibilidade de manutenção da interessada na titularidade da serventia que lhe foi delegada, por força, inclusive, de precedentes deste Conselho Nacional de Justiça, no que tange à tese ora esposada.
Veja-se, por exemplo, que o Plenário do Conselho, nos autos de Pedidos de Providências n.ºs 415 e 721, relatados pelo eminente Conselheiro Rui Stoco, onde se discutia a natureza do Serviço de Distribuição de Processos do Distrito Federal e dos Territórios, colocado em concurso como se atividade notarial e de registro fosse, bem como a possibilidade de expedição de certidões cíveis e criminais por essa serventia, decidiu julgá-los parcialmente procedentes apenas para que o Tribunal de Justiça respectivo “oficialize o Serviço de Emissão de Certidões de Distribuição de feitos cíveis e criminais, preservado no cargo, excepcionalmente e apenas para o caso concreto, o titular da serventia, até a vacância”.
Destaco, por pertinente, trecho do voto proferido pela ilustre Conselheira Andréa Pachá naquela oportunidade:

“(...)
O atual titular da Serventia submeteu-se a Concurso Público e foi aprovado em segundo lugar. Optou pelo Cartório da Distribuição que possuía e possui atribuição para a concessão das certidões. O concurso foi realizado em 2001 e somente agora, um cidadão ingressa com o presente PCA objetivando excluir daquele Cartório tal atividade.
Tal medida não pode ser acolhida em respeito ao princípio da razoabilidade. A possibilidade da delegação da atividade que ora se pretende excluir decorreu de interpretação, inda que equivocada do texto constitucional. Nenhum prejuízo sofreu a administração com tal delegação, mesmo porque o serviço vem sendo regularmente prestado e a Serventia conta com funcionários que ali trabalham há muitos anos. Não há como se avaliar o impacto financeiro com a imediata estatização dos serviços ou até mesmo o risco de interrupção da atividade.
Desta forma, entendo que a (...) delegação deva ser mantida e , tão logo o Cartório vague, o TJDF estatize tais serviços.
Por tais fundamentos, VOTO no sentido de reconhecer a indelegabilidade dos serviços de distribuição e registro, determinando ao TJDF que, tão logo a Serventia seja declarada vaga, promova a sua estatização.
(...).” (Destaquei).
No julgamento do Procedimento de Controle Administrativo n.º 510, relator o Conselheiro Felipe Locke Cavalcanti, vencido, em que a Ordem dos Advogados do Brasil – Seção do Estado do Rio de Janeiro buscava anular o XLI Concurso de Ingresso na Magistratura daquele Estado, o Plenário do Conselho julgou parcialmente procedente o pedido para preservar nos cargos os Juízes Substitutos dele originários, invocando como fundamento os princípios da segurança jurídica, do fato consumado e a teoria da modulação prospectiva dos efeitos das nulidades.
Colho do substancioso voto do Conselheiro Rui Stoco os seguintes fragmentos:

“(...)
Feito esse breve exórdio acerca das nulidades, cabe inseri-las no contexto da convalidação possível, aproximando-se essa solução ao princípio da segurança jurídica.
No julgamento do RE 197.917 pelo STF o Ministro Gilmar Mendes, ao abordar a questão da declaração de inconstitucionalidade in concreto e da limitação de seus efeitos, observou que, ‘nesses casos, o afastamento do princípio da nulidade da lei assenta-se em fundamentos constitucionais e não em razões de conveniência’.
E assim deve ser.
Mas não se pode deslembrar que o princípio da segurança jurídica, que justifica o afastamento da nulidade do ato, também tem extração constitucional.
Advirta-se que a segurança jurídica é, ainda, a forma de expressão e projeção na sociedade de três outros princípios expressamente previstos no art. 5º, inciso XXXVI da Carta Magna: a) direito adquirido; b) ato jurídico perfeito; c) coisa julgada.
(...)
Em julgamento histórico, a Suprema Corte, tendo novamente como relator o Ministro e constitucionalista GILMAR FERREIRA MENDES, deixou afirmado que ‘o princípio da possibilidade de anulamento foi substituído pelo da impossibilidade de anulamento, em homenagem à boa-fé e à segurança jurídica’, e que ‘a prevalência do princípio da legalidade sobre o da proteção da confiança só se dá quando a vantagem é obtida pelo destinatário por meios ilícitos por ele utilizados, com culpa sua, ou resulta de procedimento que gera a sua responsabilidade. Nesses casos não se pode falar em proteção à confiança do favorecido’ (RTJ 192/620).
(...)
Assim, segundo RAFAEL MAFFINI: ‘Não se pode olvidar que, consoante já decidido pelo próprio STF (Pet. 29.90 QO, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 27.05.2003), a legalidade não pode mais ser considerada um fim em si mesmo, porquanto se apresenta dotada de uma índole eminentemente instrumental, justamente orientada à consecução do sobreprincípio da segurança jurídica. Em outras palavras, a legalidade não existe para a própria legalidade, mas para a obtenção de um estado de coisas que enseje segurança jurídica e, assim, conforme o Estado de Direito. Daí por que se afirmar que la seguridad jurídica no es solamente seguridad em legalidad, sino también, seguridad em el Derecho (Javier García Luengo. El princípio de protección de la confianza en el Derecho Administrativo. Madrid: Civitas, 2002, p. 198) (Modulação temporal in futurum dos efeitos da anulação de condutas administrativas. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: FGV-Atlas, v. 244, p. 231).”

Antes, porém, de encerrar seu raciocínio, o Conselheiro Rui Stoco lançou a seguinte advertência:

“Não se pode desconsiderar, ainda, a boa-fé dos destinatários dos atos praticados por órgãos ou agentes do Poder, posto que esses – certamente – não contribuíram para a invalidade que pode turvar tais atos.”

No caso em exame, impõe-se reconhecer que a interessada Sidnea Maria Portes Name, ao pleitear junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Paraná a sua efetivação como titular da serventia, não se utilizou de meios ilícitos ou de procedimento que pudesse gerar a sua responsabilidade, de forma a induzir a erro a ilustre autoridade que lhe outorgou a delegação; antes, o fez fundada na convicção de que o artigo 208 da Constituição Federal de 1967, com a alteração introduzida pela Emenda nº 22/1982, lhe garantia tal direito.
Da mesma forma, a Administração, na pessoa do ilustre Desembargador Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, ao decidir pelo deferimento do pedido expressou motivadamente o seu convencimento, adotando a tese jurídica que se aplicava ao caso, segundo sua consciência, não se cogitando, portanto, aqui e ali, de ofensa ao princípio da boa-fé.
Daí se amoldar ao caso em tela a seguinte conclusão de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, também citada por ADA PELLEGRINI GRINOVER:

“A segurança jurídica tem muita relação com a idéia de respeito à boa-fé. Se a Administração adotou determinada interpretação como a correta e a aplicou a casos concretos, não pode depois vir a anular atos anteriores, sob o pretexto de que os mesmos foram praticados com base em errônea interpretação. Se o administrado teve reconhecido determinado direito com base em interpretação adotada em caráter uniforme para toda a Administração, é evidente que a sua boa-fé deve ser respeitada. Se a lei deve respeitar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, por respeito ao princípio da segurança jurídica, não é admissível que o administrado tenha seus direitos flutuando ao sabor de interpretações jurídicas variáveis no tempo.” (“A atividade administrativa em face do sistema Constitucional”. In “Os 20 anos da Constituição da República Federativa do Brasil” / Alexandre de Moraes, coordenador. – São Paulo : Atlas, 2009, p. 49). [Destaquei]

Finalizando, quanto ao argumento de que “faltava à interessada o requisito de identidade entre a serventia de interinidade e a serventia de efetivação”, anoto que o artigo 208 da Constituição Federal de 1967 estabelecia que a efetivação do cargo de titular na serventia vaga dependia de dois requisitos, quais sejam:

a) investidura na forma da lei (concurso público);
c) que o substituto contasse ou viesse a contar 5 anos de exercício nessa condição (de substituto) e na mesma serventia, até 31 de dezembro de 1983.

Penso, porém, que, se a norma constitucional anterior pretendesse que a efetivação no cargo de titular somente poderia ocorrer na mesma serventia, na qual o substituto tivesse implementado os dois requisitos legais, tê-lo-ia declarado expressamente: na mesma serventia vaga. (Destaquei)
Limitando-se o texto constitucional revogado a se referir apenas a mesma serventia, dá margem à interpretação de ser nela que o substituto deveria ter implementado aqueles dois requisitos, mas não o de que somente nessa serventia poderia pleitear a efetivação, tema que, aliás, não parece ter sido objeto ainda de oportuno exame pelo Supremo Tribunal Federal.
Neste passo, considerando a jurisprudência da Suprema Corte favorável à modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo em determinadas circunstâncias, peço vênia ao eminente relator para julgar improcedente o pedido mantendo íntegro o Decreto Judiciário nº 272, de 15 de maio de 2003, do Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, com a permanência da interessada, Sidnea Maria Portes Name na titularidade do Cartório do 1º Ofício de Protestos de Títulos de Curitiba, Estado do Paraná.

III – CONCLUSÃO

Ante o exposto, JULGO IMPROCEDENTE O PEDIDO mantendo íntegro o Decreto Judiciário nº 272, de 15 de maio de 2003, do Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, com a permanência da interessada, Sidnea Maria Portes Name, na titularidade do Cartório do 1º Ofício de Protestos de Títulos de Curitiba, Estado do Paraná.
Brasília, 14 de abril de 2009.


ALTINO PEDROZO DOS SANTOS
Conselheiro Vistor

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